Crónica de Jorge C Ferreira | Que mundo?

Jorge C Ferreira

 

Que mundo?

por Jorge C Ferreira

 

O mundo em ebulição. Panela sem tampa. A água a ferver. Os bicos de um fogão de lume bruto. Uma nova explosão. O cheiro a carne queimada.

As guerras que não terminam. As mortes sempre desnecessárias. A monstruosidade das mortes a sangue-frio. A polícia a não saber que o seu comportamento tem de ser um exemplo. As infiltrações de corpos estranhos nas várias corporações. As pandemias de várias índoles. Os subúrbios de todo o mundo. Os cemitérios nos mares. Tanto mar e tantos mortos. Buscar a salvação e encontrar a morte. E a ilha ali tão perto.

Vamo-nos ajoelhando a pedir perdão por nós e pelos outros. Aquele joelho no chão cujo significado é escusado explicar. Todos se lembram do acto criminoso que levou a este modo de repudiar a morte por alguém que devia preservar a vida. O mundo está abalroado por coisas sem sentido. Por coisas difíceis de explicar.

Depois vem a explosão de violência, também ela injustificada. Outra sem razão. O vandalismo feito por muitos que se fartaram de se manifestar pacificamente e não obterem nada e por outros que acham que só com violência se combate a violência. A infiltração dos extremismos organizados. Os violentos por natureza. Gente que já vive nas margens da vida. Os marginais sem retorno. A má integração. O não dar o mínimo para viver a quem trabalha. O trabalho escravo. Em Portugal este caldo de cultura está em andamento e parece passar ao lado de quem devia estar mais atento e agir.

As televisões de notícias passam os mesmos factos horas a fio. O sangue corre vivo em imagens escusadas. Aparecem os chamados especialistas que mostram pouco saber e enchem as antenas. Pessoal bem maquilhado, fatos de bom corte. Enquanto nós esperamos as pessoas que vale a pena ouvir. As pessoas que têm coisas para dizer. Que não se baseiam no sucedido, mas antes na razão por que sucedeu. As pessoas que vão ao cerne da questão. À raiz do problema. As pessoas que sabem do que falam.

Quantos programas podíamos ter com meia dúzia de pessoas bem escolhidas. Todos teriam um programa por semana e teríamos uma semana cheia de aprender. Eu sei que ainda temos programas que vale a pena ver. Canais com programação mais cuidada. Mas os canais da desgraça, do crime, do sangue a correr em rodapés com erros de estarrecer, as histórias incríveis, o impossível de acreditar, os directos quase antes do facto acontecer, as entrevistas estapafúrdias, as respostas que não se querem ouvir, a irracionalidade. Esses são os canais que preenchem a vida da maioria dos cidadãos.

Uma intoxicação pura e dura. As imagens que se multiplicam vezes sem fim. Um excesso de informação que faz quase com que não se oiça o texto que está a ser debitado. Acirram-se ideias que vão levar ao confronto. Os extremistas agradecem.

Mas quantos Nahel, quantos George Floyd, vai ser preciso assassinar para que o mundo mude?

Este mundo está cada vez mais perigoso e não vejo melhoras nenhumas. As guerras alastram. Os exércitos de mercenários existem por todo o lado. Os homens de Estado rareiam. A Europa é uma brincadeira que parece não querer levar-se a sério. O racismo continua presente. A diferença entre os ricos e os pobres aumenta. Há gente organizada que quer fazer regredir as liberdades. Isto está a ficar mau, meus Amigos, está mesmo mau. Para onde vamos? Que caminho é este? Que fazer?

«Tens razão, isto está muito mau. Já tenho medo. Um horror.»

Fala de Isaurinda.

«Temos de mudar isto. Temos de arranjar maneira de lutar contra o medo.»

Respondo.

«Não sei, não sei. Não vejo caminho.»

De novo Isaurinda e vai, um ar preocupado.

 

Jorge C Ferreira Julho/2023(403)

 


Jorge C. Ferreira
Jorge C. Ferreira (n.1949, Lisboa), aprendeu a ler com o Diário de Notícias antes de ir para a escola. Fez o curso Comercial na velhinha Veiga Beirão e ingressou na vida activa com apenas 15 anos. Estudou à noite. Foi bancário durante 36 anos. Tem frequentado oficinas de poesia e cursos de escrita criativa. Publica, desde 2014, uma crónica semanal no Jornal de Mafra. Como autor participou nas seguintes obras: Antologia Poética Luso-Francófona À Sombra do Silêncio/À L’Ombre du Silence, na Antologia Galaico-Portuguesa Poetas do Reencontro e A Norte do Futuro, homenagem poética a Paul Celan.  Em 2020 Editou o seu primeiro livro: A Volta À Vida Á Volta do Mundo; em 2021 Desaguo numa imensa sombra. Dois livros editados pela Poética Edições.

Pode ler (aqui) todas as crónicas de Jorge C Ferreira


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24 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | Que mundo?”

  1. Margarida Macedo Pires

    Obrigada querido “Poeta” por mais uma estupenda crónica, onde a revolta se mistura com a sensação de impotência face aquilo em que o mundo se está a tornar. Mas a sua Isaurinda é uma mulher sábia quando diz “Temos de arranjar maneira de lutar contra o medo”. Eu estou com ele e como sou uma mulher de fé e de esperança, acredito firmemente que todos juntos podemos mudar o mundo, assim o queiramos… Grande abraço

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Margarida. Uma luta que exige coragem, sair do nosso lugar de conforto. Mudar o mundo, mudR a vida. Muito grato pela sua presença. Abraço grande

  2. m.clara

    Sinto muito medo…penso em como será o mundo daqui a uns anos e como viverão os meus netos e os seus filhos…
    O tempo passa e afinal, democracia não traz a paz que nós almejavamos para este novo presente e o desejo dum mundo melhor… como pode o ser humano continuar a fazer guerra e fazer crescer o mal, na ganância e desigualdade!?
    É querido amigo…sinto muito medo. Desilusão e ainda a vontade de sonhar…como quando era criança e parecia que tudo era possível.
    Parabéns mais uma vez pela boa cronica que nos leva a meditar e reflectir.
    Abraço imenso e ainda na esperança que seja a poesia e a arte em geral que eleve a humanidade ao melhor de si mesma.

    Clara Figueiredo

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Clara. O que estamos a passar! Nós que chegámos a acreditar que tudo era possível, que o tínhamos o futuro na mão, que derrotámos ditadores. Vamos agarrar na força que nos resta e mudar de novo o ciclo da história. Muito grato pelo seu comentário. Abraço enorme

  3. Jorge C Ferreira

    Obrigado Claudina, querida Amiga. Temos de ter coragem para enfrentar os novos vilões. Não te esqueças que jß enfrentámos e vencemos outras vilezas. A minha gratidão. Abraço grande

  4. José Luís Outono

    Estranho Mundo, onde tentamos respirar, e acordar cada manhã com o oxigénio vitamina de um viver.
    Mundo sem definições, face aos corpos cadentes, e as sementes repletas de dúvidas.
    Terra planeta, onde o interior arde, e o exterior nem conhece a palavra socorro.
    Humanos sem definição e olhares invisíveis nas nuvens guerreiras.
    Ambiente sem orgulho e a palavra caos define o dicionário sem significados.
    Perdoa-me amigo … continuar o teu grito, e perguntar-me se o segundo seguinte nascerá apesar da esperança incompleta e carregada de interrogações frias e cadentes.
    Triste Mundo, que definiste em passados e presentes sem lei ou regra.
    Amigo, grato pelo teu desafio, apesar do negro aferidor do impulso de tristeza.
    Amigo, que o nosso abraço ainda seja orgulho puro e confiante!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado, José Luís, Poeta. Que sentido e puro o teu comentário. Estamos juntos nos momentos que nos incomodam. Sabemos ver nos olhos do outro a verdade. A minha gratidão. Grande abraço.

  5. Regina Conde

    A vontade de te abraçar pela coragem de escreveres esta dolorosa crónica. Sei o quanto sofres com as dores do mundo. Tanta crueldade. Lembro-me de ser pequena e ter medo das guerras. De questionar o meu pai se as guerras acabavam. O pouco que se sabia do mundo, lia no jornal que o meu pai trazia ao final do dia. Através da televisão a guerra medonha no Vietname. Querido Amigo, o esforço constante para que a tristeza não se entranhe. Desligar a televisão não chega. Os fabricantes de notícias são muitos. Inventam para desmentir no minuto seguinte, sem vergonha. Obrigada Jorge. Beijinho num abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Regina. Que mundo este! Continuamos a lutar por outro viver. Nunca desistir. Enorme a nossa vontade de mudar as coisas. É num enorme abraço que te faço chegar a minha gratidão.

  6. Eulália Coutinho Pereira

    Crônica excelente..Real.Que mundo é este em que o sonho deu lugar
    ao pesadelo. Regressei ao passado. Sinto a esperança de um mundo melhor, fim da guerra e violência. Desilusão. Veio a pandemia, o isolamento, o mundo ficou negro. As novas tecnologias surpreendem diariamente, para o bem e para o mal. Assiste-se à destruição e à guerra, em directo, imagens e notícias repetidas até à exaustão. O desespero dos que não têm saída. O futuro dos homens na mão dos senhores da guerra.
    Não era este o legado que queria deixar aos meus netos.
    Obrigada meu Amigo por estar desse lado.
    Grande abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Eulália. A globalização. As pandemias. A pobreza e a riqueza. O mundo num bolso para o bem e para o mal. A falta de ética e os valores a escaparem-se entre os dedos. Muito grato pelo seu comentário. Abraço enorme

  7. Maria Luiza Caetano Caetano

    Li e reli, descrito exactamente, como vai este mundo.Tanta crueldade a todos os níveis. Tão tristes momentos estamos a viver. Homens cruéis que barbaramente, matam inocentes.
    O Mediterrâneo de doce mar, passou a triste cemitério. Raramente vejo ou ouço, os homens que sabem o que dizem e sabem o que fazem.
    Tão bem analisou, esta grave situação que estamos a viver. É sempre atento e grande o seu saber.
    Bela crónica, deliciosa a sua escrita. sempre com base na verdade. Adorei, querido escritor. A Isaurinda já tem medo! Eu também .
    Continuarei a pedir, por nós e por todos. Paz!
    Abraço grande, meu Amigo.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria Luiza, minha querida Amiga. Que bem leu o que escrevi. Que belo e generoso o seu comentário. É uma alegria imensa tê-la presente neste nosso espaço. A minha imensa gratidão. Abraço grande

  8. Filomena Geraldes

    Como lhe é peculiar o escrevinhador foi ao âmago desta realidade que a todos atinge.
    Não há como omiti-la ou dar-lhe outras nuances.
    Este é a versão de quem acompanha de perto as notícias.
    Desde as mais bizarras até às que são caracterizadas por um trabalho sério e íntegro. Isento.
    Estou exausta de imagens que se repetem e que apenas têm como objectivo elevar as estatísticas das audiências.
    A violência gratuita, o sofrimento, a morte, os assassinatos e o sangue escorrem pelos ecrãs da televisão.
    As guerras continuam a ser temas a que não podemos ficar alheados.
    Os assassinos a soldo, impunes e deixando rastos de morte.
    O mar de um vermelho-sangue.
    Hoje não me apetece escrever sobre o que amo. Dias longos. Mar e rosas. A espiral dos búzios. A geografia das palavras. A memória dos ciprestes. Madrugadas em silêncio. A paz .
    O devagar do amor.
    Vou embarcando num mar de temporais.
    Sem bússola. Sem mapas. Sem as velhas canções dos mareantes.
    De velas desfraldadas. Sem terra à vista.
    Perco-me. Sem norte. Em noites de lua nova.
    Ah, se eu pudesse gritava!
    O cronista assiste. Analisa.Reflecte. Comenta. Interroga. Insurge-se.
    Que mais pode ele fazer???
    Apenas a coragem que lhe apontam. O mérito. O garante da verdade.
    A força que ainda o move.
    A solidez dos argumentos.
    A triste tristeza.
    Hoje não me apetece escrev….

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Mena. É tão bom o que escreveste. Também eu acho que hoje não devo escrever mais para não estragar o teu belo texto. Amei. A minha imensa gratidão. Abraço imenso.

  9. Isabel Soares

    Uma crónica social. Escrita com com lágrimas vermelhas. A dor a perpassar as palavras numa, ainda, estupefacção só possível e gritada por quem almeja o humano e se alimenta de valores éticos.
    O escritor desvela o grotesco sócio-político num lacinante grito de revolta. E impotência. A voz não é escutada. Estas vozes não o são.
    No texto também é patente a compaixão com os homens em sofrimento pela jornada da sobrevivência. Na fuga ou na fome. A solidariedade e a empatia na crueza de palavras a revelar o horror de existências, no abismo. Nos abismos. E a incompreensão. A razão que não se capta. A ausência de sentido. A lógica invertida. Palavras de uma reflexão dolorosamente aprisionada em si mesma.
    O autor a dizer a morte anunciada do humano. Quem ouve? Que “fazer”? E o sentimento de estar perdido numa impotência que parece permanente. O precipício como fim.
    E a superficialidade. A construção de imagens como paradigma de informações avulsas, sucessivas a mostrar acontecimentos sem suporte de uma cognição que esclarecesse.
    O cronista a dizer o indizível. Pensar o que o trespassa como lâminas que o sangram. Desse líquido que teima em não o abandonar e dele ousadamente dizer os não-ditos.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Isabel. Não sei que dizer por tão intenso e enorme comentário. A vida passada a pente fino. A injustiça e a desgraça. As mortes sem razão. Tão generosa minha Amiga. Muito grato. Abraço grande

  10. Cecília Vicente

    Que mundo este, vivemos a era digital, de inteligência artificial, somos tão pouquechinho, gostaria de ser gigante, mas, olho-me como uma pequena formiga , faço falta ao mundo, creio eu, mas de uma energia gasta e impotente perante factos. Pedir perdão pelos que se dão há monstruisidade é banal pois tudo se repete, eu sim, peço perdão por um mal que não me pertence deixando-o como herança. Triste, e infindável história que não aprendemos. Resta-me saber que mesmo impotente perante as atrocidades nascerá alguém que dará continuidade ao que é ser-se humanista, mesmo que possa vir a ser ” Um Polegarzinho”…
    Obrigada, Jorge. Abraço!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cecília. Sim, somos um pequeno grão no meio de tanta coisa nova. O digital e a inteligência artificial podem ser fatais ou libertadores. Depende da forma com são usadaa. O teu comentário é muito importante. A minha gratidão por estares aqui. Abraço forte

  11. Fernanda Luís

    Jorge, meu amigo
    Adorei a crónica.
    Sem comentários. Se me autorizar, subscrevo.
    Senti tudo e visualizei as imagens à medida que ia lendo. Podemos chamar Leitura 3D?!
    Amo a sua arte de abordar e dizer as coisas.
    Super!!!
    Não imagina o conforto que dá saber que existem pessoas que pensam como nós.
    Não há caminho???…Pois, também não vislumbro.
    Obrigada por tanto.
    Fernanda

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Fernanda. O seu comentário é genial. Temos de caminhar juntos para mudar isto. É um contentamento ter aqui a sua presença. A minha gratidão. Abraço grande

  12. Branca Maria Ruas

    Querido amigo, disseste tudo!
    Que mundo é este?
    A violência assusta-me a todos os níveis.
    É assustador!
    Recordo a adolescência e nos tempos em que acreditei num mundo melhor, mais justo, mais fraternos, com menos desigualdades. É desolador perceber que muitos dos meus sonhos se desfizeram…
    Ainda há gente boa, que deseja o bem para todos e pratica acções em sintonia com o que pensa. Mas os outros assustam-me!
    Gostava tanto que a minha neta pudesse viver num mundo melhor…
    Obrigada pelo texto.
    Concordo com TUDO o que escreves.
    Focaste os pontos essenciais com mestria.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria. Minha querida Amiga. Tão bom ler o que escreves. Fizeste lembrar-me das flores no cabelo e do despertar de tudo. Da luta contra as guerras. Da rebeldia. Espero que a Mariana viva um mundo melhor. A minha enorme gratidão. Abraço enorme

  13. Silva Claudina

    Querido Poeta Amigo como gosto de ler as tuas crónicas! Não temos homens de estado! O Mundo está a ruir ! Tenho medo, muito medo! Bem hajas!

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